Quinta-feira, 4 de Janeiro de 2007

Sobre o Pico

Cá estamos de novo. Depois das festas e de algum descanso, com algum abuso alimentar à mistura, toca a " gastar " algumas calorias.

Continuando com a narrativa da subida à montanha:

" Continuamos depois a caminhar.As nuvens pairavam já abaixo de nós e

tornavam-se mais compactas ao cair da tarde.O nosso horizonte estava agora

limitado pelas nuvens;não viamos a terra;caminhavamos fora do mundo.De vez

em quando, envolvia-nos um nevoeiro e era preciso parar para não nos

perdermos, para não irmos cair nalgum precipício, nalguma lagoa de águas

pouco profundas das muitas que iamos encontrando. Lembro-me que através do

nevoeiro, quando este pela sua tenuidade nos permitia ver ainda a certa

distância, os bois e os carneiros, que por ali pastavam, tomavam formas

gigantescas, como vistos através de lentes poderosas.
Aquela meia claridade do sol posto, é indescritível. A natureza rude do

monte agreste, banhado por ela, tomava uma doçura tal que parecia animada

dum mágico poder de traduzir um pensamento de resignação.Não havia o mais

ligeiro sopro de vento. As águas tranquilas dos pântanos acariciavam os

fetos verdes e mimosos; as próprias quebradas da montanha-algumas de

centenas metros de altura-não infundiam pavor; causavam um sentimento de

piedade, como em presença dum castigo da terra ingrata nas convulsões dum

sismo vingador.
Eu vivi umas horas de sonho. Envolto pelas nuvens, à luz melancólica do fim

do dia, havia no ambiente um quer que fôsse de feérico, de místico, de

sobrenatural.
Acordei desse sonho junto de uma imensa furna. Oa guias conduziram-nos ali

para repousarmos um pouco da noite. Era um verdadeiro salão de fadas essa

Furna. O tecto abobadado deixava pender estalactites de variadas formas.

Lateralmente, a rocha nua, irregular, esburacada, donde saía, a custo, uma

vegetação anémica. O solo regular, plano, alcatifado de folhas sêcas. A um

lado uma abertura quasi circular de cerca de 2 palmos de diametro, para a

qual os guias nos chamam a atenção, lançando nela uma pedra volumosa.

Ouvimos primeiro os sons ásperos da pedra batendo contra as paredes daquela

perfuração; depois sons de cada vez mais cavos, amortecidos pela distância

que a pedra ia percorrendo; depois....mais nada. Nunca ouvimos o baque

final da pedra caindo no fundo. Era uma perfuração interminável.
Nessa gruta nos hospedamos. Embora estivessemos em Julho, o termómetro do

Lacerda marcava 4 graus centígrados. Jantamos à luz dos archotes; mas os

guias aumentaram a iluminação lançando fogo às urzes sêcas, que revestiam a

encosta fronteita. Era um costume antigo daquela gente: incendiar a encosta

para tornar um pouco mais acessível os caminhos ínvios da serra deserta. Ao

ver arder tôda aquela encosta num aspecto bárbaro e pavoroso lembrei-me do

perverso desígnio do malfadado Nero mandando incendiar Roma.
Passamos pelo sono; mas pouco depois, noite fechada ainda, começamos a

subida íngreme do Pico Grande. O céu estava límpido, etéreo, sem um farrapo

de nuvens. As estrelas brilhavam mais e ao longe-muito ao longe-cintilava

frouxamente a iluminaçao dos faróis das costas açoreanas. Subimos, subimos,

subimos sempre. Aqui e além eram necessárias artes de acrobata, em saltos

perigosos, em suspensões arriscadas. Nenhum de nós falava. Só os guias

cantavam de vez em quando a melopeia das suas canções regionais. Lembro-me

duma cantiga, que tem um sabor popular regional aliado à sentimentalidade

própria da raça.
Dizia assim :

         « A neve do Pico Alto
         Ainda se não derreteu;
         E a palavra que me deste
         Ainda me não esqueceu!»

Começava já uma luz indecisa do crepúsculo matutino. As estrelas esmaeciam

na limpidez azulina dos céus. E era manhã quando chegamos ao alto do Pico

Grande. O frio era intensíssimo. O mercúrio do termómetro estava já abaixo

de zero. O Pico dava o mal; mas o Pico dava ....o remédio. Abaixo de nós

estava agora uma cratera larga, hiante, com pedregulhos ingentes de gelo:

mas era preciso subir mais ainda: ao cume do « Pico Pequeno ». 

 

Por hoje fico por aqui.No final tecerei algumas considerações. Obrigado pela paciência, mas recoradar ( e, para mim, também comparar, com a minha subida ) é viver.

Um Bom Ano

tags:
publicado por viajantenocanal às 22:39
link do post | comentar | favorito
2 comentários:
De picarota310172 a 5 de Janeiro de 2007 às 12:46
Se eu te disser que sou Picarota, de gema!!, e que ainda não subi ao Pico tu não me acreditas, pois não?!
Pois é, tenho medo das alturas...prefiro admirá-lo cá de baixo!
De viajantenocanal a 5 de Janeiro de 2007 às 22:18
Viva, Picarota de gema!
Não ter subido ao Pico?Não acredito, não! Ou melhor, acredito, mas não perdoo! Ou melhor, perdoo, mas não aceito! É como na minha terra estar a olhar para um arroz de cabidela, cheirá-lo, gostar dele e não o comer, com medo de se engasgar com um osso!Medo das alturas! Mas que alturas? Andar de avião é bem pior: não tens os pés no chão ( descontando o do avião! ).Viver no " paraíso " e não ir ao " céu " não merece desculpas! Então se atè a velhinha de 80 anos lá subiu! Agora sim, o Pico pode não ser " meu ", mas a montanha é " minha "!E esta?
Brincadeira à parte, não sabes o que perdes! Cá por mim, conto lá ir mais de uma vez este ano. Talvez te mande umas fotos, para aguçar o apetite. Ou atire uma pedrinha, para castigo.
Um bom fim de semana

Comentar post

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Abril 2007

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.posts recentes

. Montanha do Pico

. Sobre o Pico

. Sobre o Pico

. Sobre o Pico

. Bom Natal

. ...

. Sobre o Pico

. Sobre o Pico

. O Pico e a TAP

. A caminho do Pico

.arquivos

. Abril 2007

. Janeiro 2007

. Dezembro 2006

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds