Cá estamos de novo. Depois das festas e de algum descanso, com algum abuso alimentar à mistura, toca a " gastar " algumas calorias.
Continuando com a narrativa da subida à montanha:
" Continuamos depois a caminhar.As nuvens pairavam já abaixo de nós e
tornavam-se mais compactas ao cair da tarde.O nosso horizonte estava agora
limitado pelas nuvens;não viamos a terra;caminhavamos fora do mundo.De vez
em quando, envolvia-nos um nevoeiro e era preciso parar para não nos
perdermos, para não irmos cair nalgum precipício, nalguma lagoa de águas
pouco profundas das muitas que iamos encontrando. Lembro-me que através do
nevoeiro, quando este pela sua tenuidade nos permitia ver ainda a certa
distância, os bois e os carneiros, que por ali pastavam, tomavam formas
gigantescas, como vistos através de lentes poderosas.
Aquela meia claridade do sol posto, é indescritível. A natureza rude do
monte agreste, banhado por ela, tomava uma doçura tal que parecia animada
dum mágico poder de traduzir um pensamento de resignação.Não havia o mais
ligeiro sopro de vento. As águas tranquilas dos pântanos acariciavam os
fetos verdes e mimosos; as próprias quebradas da montanha-algumas de
centenas metros de altura-não infundiam pavor; causavam um sentimento de
piedade, como em presença dum castigo da terra ingrata nas convulsões dum
sismo vingador.
Eu vivi umas horas de sonho. Envolto pelas nuvens, à luz melancólica do fim
do dia, havia no ambiente um quer que fôsse de feérico, de místico, de
sobrenatural.
Acordei desse sonho junto de uma imensa furna. Oa guias conduziram-nos ali
para repousarmos um pouco da noite. Era um verdadeiro salão de fadas essa
Furna. O tecto abobadado deixava pender estalactites de variadas formas.
Lateralmente, a rocha nua, irregular, esburacada, donde saía, a custo, uma
vegetação anémica. O solo regular, plano, alcatifado de folhas sêcas. A um
lado uma abertura quasi circular de cerca de 2 palmos de diametro, para a
qual os guias nos chamam a atenção, lançando nela uma pedra volumosa.
Ouvimos primeiro os sons ásperos da pedra batendo contra as paredes daquela
perfuração; depois sons de cada vez mais cavos, amortecidos pela distância
que a pedra ia percorrendo; depois....mais nada. Nunca ouvimos o baque
final da pedra caindo no fundo. Era uma perfuração interminável.
Nessa gruta nos hospedamos. Embora estivessemos em Julho, o termómetro do
Lacerda marcava 4 graus centígrados. Jantamos à luz dos archotes; mas os
guias aumentaram a iluminação lançando fogo às urzes sêcas, que revestiam a
encosta fronteita. Era um costume antigo daquela gente: incendiar a encosta
para tornar um pouco mais acessível os caminhos ínvios da serra deserta. Ao
ver arder tôda aquela encosta num aspecto bárbaro e pavoroso lembrei-me do
perverso desígnio do malfadado Nero mandando incendiar Roma.
Passamos pelo sono; mas pouco depois, noite fechada ainda, começamos a
subida íngreme do Pico Grande. O céu estava límpido, etéreo, sem um farrapo
de nuvens. As estrelas brilhavam mais e ao longe-muito ao longe-cintilava
frouxamente a iluminaçao dos faróis das costas açoreanas. Subimos, subimos,
subimos sempre. Aqui e além eram necessárias artes de acrobata, em saltos
perigosos, em suspensões arriscadas. Nenhum de nós falava. Só os guias
cantavam de vez em quando a melopeia das suas canções regionais. Lembro-me
duma cantiga, que tem um sabor popular regional aliado à sentimentalidade
própria da raça.
Dizia assim :
« A neve do Pico Alto
Ainda se não derreteu;
E a palavra que me deste
Ainda me não esqueceu!»
Começava já uma luz indecisa do crepúsculo matutino. As estrelas esmaeciam
na limpidez azulina dos céus. E era manhã quando chegamos ao alto do Pico
Grande. O frio era intensíssimo. O mercúrio do termómetro estava já abaixo
de zero. O Pico dava o mal; mas o Pico dava ....o remédio. Abaixo de nós
estava agora uma cratera larga, hiante, com pedregulhos ingentes de gelo:
mas era preciso subir mais ainda: ao cume do « Pico Pequeno ».
Por hoje fico por aqui.No final tecerei algumas considerações. Obrigado pela paciência, mas recoradar ( e, para mim, também comparar, com a minha subida ) é viver.
Um Bom Ano
. ...